Interesse público

Coisas que faltam nesta cidade:

– lugar para dormir no meio da tarde;

– lugar para chorar louca e descontroladamente sem ser incomodado.

Prefeito, linda a sua preocupação com a mobilidade e os ciclistas – dá gosto de ver as novas ciclovias da cidade. Mas, se sobrar um tempinho, que tal cuidar também dos sonolentos e dos corações partidos?

O que quero

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Acho um desserviço quando aquelas pessoas ricas/lindas/bem sucedidas dão entrevistas e contam como sempre quiseram ser médicos/atores/astros do rock, desde pequenininhos. Morro de inveja. Não exatamente pelo sucesso, mas por essa certeza toda cheia de si. Já quis tantas coisas desde que começou aquela história de “o que você quer ser quando crescer”, que nem me lembro mais. Ainda agora, crescida tanto quanto poderia, continuo a querer e desquerer tudo, oito vezes por minuto.

Indecisão é uma coisa linda na poesia, mas acaba com a vida da gente…

E por falar em poesia, achei aquele poema do Manuel Bandeira que estava procurando um tempão atrás: o Belo belo.

Fico pensando que talvez a tuberculose tenha sido a melhor carta de alforria que o Bandeira poderia ter. Uma carta branca, pra ser o que quisesse ser. Depois do diagnóstico, largou a Politécnica e foi buscar tratamento, respirar melhores ares. E, como morrer de fome já não era a primeira preocupação, virou poeta.

Belo belo belo, 
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

– Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

– Bandeira, quero absolutamente tudo, inclusive as coisas mais simples.

(a foto lá de cima é uma antiga, do Flickr)

Nota

Lagarta listrada

Vamos conversar amenidades, meu bem.

Me fala mais uma vez que número você calça, que cerveja você toma. Conta que trabalhou até tarde e me lembra que odeia peixe cru.

Ou não diz mais nada. Senta aqui do lado, vamos ver televisão. É que você aí quietinho já é vida demais pra eu fazer caber dentro da minha.

Preciso de mais tempo, querido.

Deixa eu me acostumar com o seu tamanho todo, seus braços compridos. Deixa eles darem voltas em volta de mim até o infinito.

A verdade é que não te chamo de querido, muito menos de meu bem. É sempre só um oi vago, um tchau molhado. Melhor a gente não entrar nesses romantismos.

Eu mato as baratas da sua cozinha, mas tenho medo de romantismos, meu amor.

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
-Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
-Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
-A gente fica olhando…
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
-Antônia, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
-Antônia, você é engraçada! Você parece louca.

do Manuel Bandeira.

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de carícias e delícias

Achei uma agenda 2013 novinha perdida no fundo da gaveta. Um soco no estômago e já é novembro. Aquela sensação apertada de mais um ano inteiro que poderia ter sido… e será que foi?

Abri em janeiro. Ironia pura. No dia 2, escrevi:
nunca consegui manter uma agenda, mas quem sabe consiga tocar uma espécie de diário…

Não deu muito certo, óbvio. Difícil mudar velhos hábitos – ou, pior ainda, um não-hábito. Minha persistência durou até o dia 3. Estava lendo o Barba ensopada de sangue, do Daniel Galera, e guardei um pedacinho:

O repertório de carícias de uma pessoa é uma coisa comovente de se pensar. Por que toca nas outras dessa ou daquela maneira. Vem de tantos lugares. O que imaginamos que deve ser bom, o que nos disseram que é bom, o que fizeram em nós e gostamos, o que é involuntário, o que é nosso jeito de agradar e ponto. Ele goza praticamente em silêncio ou, pensando bem, em silêncio total.

Delícia de trecho, penso de novo. Impossível não repassar, gesto por gesto, uma coleção de cafunés, mordiscadas, apertões, desde aquele primeiro beijo, no pátio da escola…

Sábado fui ver a exposição do Cazuza no Museu da Língua Portuguesa. Numa das salas, as telas exibiam depoimentos com  causos, curiosidades. Alguém resolveu explicar os “segredos de liquidificador” da letra do Codinome Beija-flor. Resgatei o escândalo que foi a primeira língua na orelha… Quase corei! (teria corado, se fosse do tipo que cora de fato)

Agora me consolo: acho que um repertório de carícias é melhor que agenda, melhor até que qualquer diário que se possa escrever.

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União estável

Era um relacionamento sólido. Afinal, ele esteve ali sempre que ela precisou: enfrentando o tédio dos domingos, as madrugadas insones, atenuando a chatice das segundas, terças, quartas-feiras…

Não era do tipo que trazia flores, mas a fazia rir, sonhar, esquecer os problemas. O que mais poderia querer?

Estava decidida. Queria oficializar a relação. Junto com todos os benefícios: direito a listar dependente no IR e no plano de saúde, além de finalmente por fim às perguntas constrangedoras das tias durante os almoços de família. Ela e o Netflix eram o casal perfeito, união mais estável não havia. Aliás, iria ao cartório assinar os papéis agora mesmo, se não fosse uma dúvida crucial:

…na hipótese remota de divórcio, quem deveria pagar a pensão?

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…do clássico Cine Paradiso.

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Sing me to sleep

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Programo o player pra tocar em repetição infinita. Uma overdose de tristeza, de breguice e de conforto. Só pra comemorar os ingressos pro show do Morrissey.

I am the son / and the heir

Não deu pra resistir ao herói mais anti-herói entre os rock stars. Do jeito que só ele pode ser: carente, vegetariano e celibatário, ficando calvo e barrigudo. Praticamente um macunaíma indie.  (indie, e não índio, veja bem…)

Que continua cantando ao meu ouvido, sem vergonha da auto piedade – Close your eyes and think of someone you physically admire / and let me kiss you

Pensar que eu já ensinei essas letras pra um garoto, no colegial:
If there’s something you’d like to try/Ask me I won’t say no, how could I? 

(e funcionou!)
Good times for a change.
Please please please/ Let me let me let me/Let me get what I want this time

E quantas vezes não fui pra pista com aquela esperança vagabunda… There’s a club, if you’d like to go/ You could meet somebody who really loves you 

(e quebrei a cara)
So you go, and you stand on your own
And you leave on your own
And you go home, and you cry
And you want to die

(ou quis quebrar a cara do dj)
Burn down the disco
Hang the blessed d.j.
Because the music that they constantly play
It says nothing to me about my life

Mas sempre volto me sentindo menos sozinha, quando toca Smiths. Mais ridícula, talvez, mas menos sozinha.
And so I drank one
It became four

Obrigada, Moz.

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Por favor assista até os 2:25 (isto é redenção!):

Ou assista uma a uma clicando aqui.

O que sobra do Dia dos Namorados

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Não bastasse uma, tenho as duas. A minha-sua e a sua-minha. Aquela que você me deu quando pensei que acabaria tudo pra sempre: você, eu e todo o resto de nós que já existiu. Mas sobrevivemos (será?), enfim. Quer dizer, eu sobrevivi aqui; você sobreviveu por aí. E as caixas, preenchidas com pedaços do “nós”, sobraram pra mim.

Uma injustiça, achei. Um egoísmo até, deixar as lembranças confinadas assim. Eu refém delas e elas reféns de mim. Logo eu, que tenho a memória tão ruim! E se me esquecer mesmo de como fui, de como fomos? E se nunca mais souber ser assim de novo? Minhas cartas de amor parecem cada dia mais ficção…

<Gosto de pensar que um dia serão tema de estudo arqueológico. Vão virar tese acadêmica, com título pomposo e tudo mais: “O exagero romântico no início do século XXI: análise da correspondência de amor de uma jovem desequilibrada”. Será que daqui a 100 anos ainda existirão mestrandos e doutorandos?>

Por isso, não tenho coragem de me desfazer delas, nem de quem eu era. Guardo com os papéis um certo orgulho do ridículo. Pra ser sincera, tenho medo de nunca mais ser tão ridícula quanto fui naquelas linhas. Escrevia tanto, tinha uma caligrafia tão bonita! Hoje morro de preguiça das palavras grandes demais pra digitar no touch screen do celular. E existiria coisa mais ridícula que o amor no tempo do whatsapp?

       Todas as cartas de amor são 
       Ridículas. 
       Não seriam cartas de amor se não fossem 
       Ridículas.

       Também escrevi em meu tempo cartas de amor,  
       Como as outras, 
       Ridículas.

       As cartas de amor, se há amor,  
       Têm de ser 
       Ridículas.

       Mas, afinal, 
       Só as criaturas que nunca escreveram  
       Cartas de amor  
       É que são 
       Ridículas.

       Quem me dera no tempo em que escrevia  
       Sem dar por isso 
       Cartas de amor 
       Ridículas.

       A verdade é que hoje  
       As minhas memórias  
       Dessas cartas de amor  
       É que são 
       Ridículas.

       (Todas as palavras esdrúxulas, 
       Como os sentimentos esdrúxulos, 
       São naturalmente 
       Ridículas.)

Alvaro de Campos.

20130612-_MG_2065– Vem, amor, vamos brincar de descobrir formas em ferrugens?

Ontem

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Ontem achei duas rugas debaixo do olho. Pegas no flagra, elas olharam para mim como se sempre tivessem estado ali.

<A campanha de publicidade da multinacional me diz que sou mais bonita do que penso. Mas o catálogo conta que posso usar o creme anti-age high tech supra sumo da indústria cosmética a partir dos 25. Faltam só uns 40 dias – acho que vou esperar.>

Não sei lidar com a velhice. Ou não vou saber, quando chegar a hora (e como saber quando for?) Deve ser um problema de filha caçula, prima caçula, neta caçula já sem avós. A “raspa de tacho”, como todo mundo me dizia. Eu achava que aquilo devia ser um insulto, um palavrão… como tinham coragem de falar assim, na minha cara?

De qualquer forma, coincidência ou não, ontem também revi essas fotos que eu gosto tanto. Eu tinha que fazer retratos e acabei neste abrigo de idosos ao lado da Cracolândia. Bobagem dizer que há beleza na velhice. Afinal há beleza em qualquer idade, em qualquer pessoa. Mas aposto que existe alguma certeza que só chega nessa parte da vida. Será que a gente finalmente se acostuma a ser quem é, como se – dia após dia – acumulasse pedacinhos de nós mesmos?

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