Não bastasse uma, tenho as duas. A minha-sua e a sua-minha. Aquela que você me deu quando pensei que acabaria tudo pra sempre: você, eu e todo o resto de nós que já existiu. Mas sobrevivemos (será?), enfim. Quer dizer, eu sobrevivi aqui; você sobreviveu por aí. E as caixas, preenchidas com pedaços do “nós”, sobraram pra mim.
Uma injustiça, achei. Um egoísmo até, deixar as lembranças confinadas assim. Eu refém delas e elas reféns de mim. Logo eu, que tenho a memória tão ruim! E se me esquecer mesmo de como fui, de como fomos? E se nunca mais souber ser assim de novo? Minhas cartas de amor parecem cada dia mais ficção…
<Gosto de pensar que um dia serão tema de estudo arqueológico. Vão virar tese acadêmica, com título pomposo e tudo mais: “O exagero romântico no início do século XXI: análise da correspondência de amor de uma jovem desequilibrada”. Será que daqui a 100 anos ainda existirão mestrandos e doutorandos?>
Por isso, não tenho coragem de me desfazer delas, nem de quem eu era. Guardo com os papéis um certo orgulho do ridículo. Pra ser sincera, tenho medo de nunca mais ser tão ridícula quanto fui naquelas linhas. Escrevia tanto, tinha uma caligrafia tão bonita! Hoje morro de preguiça das palavras grandes demais pra digitar no touch screen do celular. E existiria coisa mais ridícula que o amor no tempo do whatsapp?
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Alvaro de Campos.
– Vem, amor, vamos brincar de descobrir formas em ferrugens?